15.2.03

o telefone que dá saudade

eu sempre fui saudosista. desde de pequena gostava de mexer em coisa antiga, empoeirada, enferrujada. crescer entre adultos e idosos resulta neste tipo de mania: sentir saudades do passado não vivido. aos sete ou oito anos, não me lembro, mamãe e eu fomos a casa de uma conhecida. a mulher era proprietária da nossa última casa alugada e vivia num bairro distante de classe média alta da cidade. quando descemos do ônibus, avistei o jardim e já suspeitava a idade da residência pelas cadeiras da varanda. havia um conjunto daquelas com assentos e espaldar baixo de madeira sobre um pé de ferro que formava um polígono. do muro aos quartos tudo era verde-água, bem ao gosto dos 50. silenciosa, sorrateira eu descobria corredores e quartos enquanto minha mãe acertava o fim do contrato de aluguel com a anfitriã. cristaleiras, pratarias, lustres, eu olhava tudo aquilo como brinquedos precisos que reluziam e poderiam me render uma novela se a visita fosse demorada. como filha única sempre brinquei sozinha fazendo de todo tipo de quinquilharia os meus companheiros. criança quieta, calada, que não não dava trabalho. bastava me dar umas coisas velhas, as histórias eram por minha conta. na sala de jantar avisto uma escada em caracol que vai dar numa porta. a curiosidade me atiçava e me impediu de pedir licença para subir. era a suíte do rapaz da casa, calças, camisas emboladas, tudo revirado como manda o costume a um jovem de 20 e poucos. a porta da salle de bains estava entreaberta, vi uma linda banheira verde tranqüila e calada na luz das três da tarde. mas antes que eu pudesse sonhar naquele tanque glamouroso fui detida. um telefone preto, daqueles pesados, enormes, de disco, pendurado na parede me puxou para junto dele. cuidadosamente como se eu estivesse tocando o próprio santo sudário tirei o fone do gancho e comecei a discar o número da minha casa. nem sinal, o aparelho estava desligado, meramento decorativo. ainda assim não perdeu seu valor. muito pelo contrário. quanto mais mudo, mais me deixava falar. imediatamente me vesti como uma mocinha dos anos 30, queria ser mais antiga que o telefone. o quaro era meu e nunca mais sairia de lá. a visita já estendera demais, morávamos longe e minha mãe me procurava pela casa, preocupada em chegar antes do anoitecer. fui flagrada com os olhos mudos, a boca aberta, perto do telefone. estava há 50 anos dali. sacudida pelos chamados voltei a mim e envergonhada pela invasão. era uma época em que os adultos não tinham ainda medo das crianças, não havia do que eu ser punida, não oferecia ameaça o meu encantamento pelos objetos casa. saí quase a força, mas sem chorar nem espernear. não tinha autonomia para decidir nada, então ia contra a vontade sem deixar transparecer o descontentamento. meu consolo foi a vizinha que tinha bonecas de pano e montes de velharia encostadas na despensa. todo fim de tarde, saudada com alegria, me era permitido remexer nos potes, nas gavetas, nos armários. e a Núbia Lafayette se lamentando no radinho rouco do criado mudo na penumbra do quarto do casal me fazia companhia.

resolvi começar o blog hoje. exatamente neste dia em que a vida achou de não ser muito legal comigo. nesse tempo todo de blog ( o primeiro eu matei há alguns dias e não merece link algum porque é um passado muito besta) eu não descobri se há um ritual ou um dia específico com significado especial para iniciar um weblog. este era para ter uma nova proposta. a página estava feita há semanas enquanto pensava no que escrever. algo que fosse a um só tempo meu e de todos. respirando fundo vou começar esta aventura.